12Vergonha, culpa e pudor numa perspectiva cientifica:
Se estudar-mos os aspectos psicológicos da vergonha e os comparar-mos aos relacionados com a culpa, perceberemos não somente o lugar diferente que o outro ocupa para o desenvolvimento destes afectos, mas também sua anterioridade em relação à culpa, contemporânea da trama edipiana, quando a vergonha aparece ligada ao pudor e à nudez. O ponto que quero destacar é um insidioso e progressivo descolamento das características sexuais da vergonha, ligadas às noções de pudor e honra e uma apresentação mais própria da cultura actual onde ela se mostra ligada aos aspectos que destacamos, sendo traduzida por uma vergonha de ser insuficiente, de precisar do outro, muito semelhante à vergonha melancólica. Mas, vamos por partes. Faz-se necessário que realizemos um recorte para o entendimento do aparecimento destes afectos, de vergonha e culpa, na cultura ocidental, de modo a compreendermos as mudanças apontadas dentro do momento cultural em que vivemos. Culpa e vergonha nem sempre estiveram ligados culturalmente. Historicamente, encontraremos na cultura grega um exemplo onde a ideia de culpa tem seu aparecimento tardio. Na aristocracia guerreira da Grécia antiga, podemos localizar um mecanismo socio-psicológico que Dodds (1998) chamou de cultura da vergonha, onde fama, prestígio social e honra eram considerados elementos necessários e supra valorizados como valores éticos e sociais. As acções humanas eram resultantes das intenções dos deuses, podendo ser descritas como desvarios, comportamentos passionais ou mesmo homicidas, sem que coubesse uma abordagem de responsabilidade individual. A progressiva queda do poder dos deuses na cultura grega posterior que culmina com Platão, torna compreensível o aparecimento da culpa. O sentido da culpa não sendo atribuído aos deuses, tornou o humano responsável por seus actos, gerado por uma intencionalidade, agora de natureza interna. Da mesma forma, o Menos, não mais sendo uma intrusão de uma paixão originada pelo capricho de um deus, promoveu a apropriação dos apetites gerando escolhas objectais que podemos incluir na noção de desejo.
Quando encontramos uma era em que a culpa aparece no cenário da vergonha, observamos que é a anterioridade da cultura da vergonha em relação à cultura da culpa que vai promover uma transformação radical nos conceitos arcaicos. A vergonha passa a ser sentida quando vinculada às experiências que se encontram ligadas à sexualidade, resultando numa certa exposição pública do sujeito frente aos outros. A montagem baseada no pudor e na honra, que aparece na nudez exposta é bastante exemplar. No artigo “Sexualidade na etiologia das neuroses” (1898) Freud descreve que o pudor está relacionado à prática clínica no que diz respeito à relação médico e paciente. O enfoque é dado para o contexto dos hábitos culturais da época e o pudor da mulher frente ao médico, que teria como protótipo a vergonha de se desnudar. Em 1905, no ensaio sobre a sexualidade infantil, Freud mantém sua abordagem ligando o pudor à exposição do corpo frente ao outro. Em um outro momento, em que o pudor é citado, no artigo “Sobre o início do tratamento” (1913), Freud, ao se referir à dificuldade do analista lidar com dinheiro, utilizará uma analogia com a vida sexual infantil do médico, onde o pudor de lidar com o dinheiro revelaria a vergonha de estar frente ao outro como que desnudado. Quando Freud diz que na primeira infância a criança é desprovida do sentimento de vergonha, seu enfoque está voltado para a não consciência desta dimensão adulta da sexualização, antes da posse da noção de diferença sexual e na minha opinião, antes de conhecer as normas e valores que a sociedade lhe irá impor. Freud escreve em 1905, em seu ensaio sobre a sexualidade infantil que, a partir de um determinado momento, levantam-se os diques da moralidade, apontando o nojo, o pudor e a moralidade – aspirações ideais estéticas e morais – Explica que este acontecimento não estaria somente ligado a uma fonte externa oriunda da educação dos adultos, mas também, com factores hereditários, organicamente determinados. Estes factores disposicionais ganhariam reforço através das normas de higiene impostas pelos pais que assim, teriam um poder de fixidez. O resultado desta operação psíquica é criar um eficaz obstáculo à satisfação pulsional sexual baseada numa estrutura polimorfa perversa. O período de latência que se segue reforçaria estes diques até a adolescência quando, por conta do declínio do Complexo de Édipo, os vectores identificatórios e de investimento se deslocariam dos pais para as figuras substitutivas. No artigo “Mal-estar na cultura” (1930) distingue dois tipos de culpa que se encontram ligados desde o início: uma frente à autoridade externa e outra, frente ao Superego. Tudo que diga respeito ao corpo e a seus desejos deve se manter afastado do olhar do outro. Assim, estaríamos no terreno da vergonha. Mais tarde, o vice-versa, ou seja, o dever de se manter afastado do território alheio, o remeterá ao sentimento de culpa. A concomitância destes dois tipos de sentimentos são contemporâneos à interligação do conflito entre os interditos parentais e as tendências à satisfação pulsional imediata. Mais tarde, nas “Novas conferências” de 1933, o sentimento de culpa aparece ligado ao sentimento de inferioridade como resultado da tensão entre inter sistémica do Eu com o Supereu, que o condena. Reconhecemos aí, uma dinâmica estrutural que pode ou não ter efeitos mórbidos. Na neurose obsessiva e na melancolia encontramos exemplos desta função hipertrofiada resultando em quadros que cursam com um severo investimento destrutivo contra o Eu. A ambivalência, que constitui a forma dinâmica de relação da criança com os pais, frente ao dilema da demanda de amor e protecção e a agressividade pela frustração da renúncia a estes, vai se transformar em um sentimento de culpa e no desejo de ser punido. No rastro desta luta, o Supereu vai reunir estas características punitivas estabelecendo, então, a tensão que acima mencionamos entre o Eu e o Supereu, sob a forma de uma angústia moral. Na culpabilidade, estará ressaltada uma falta cometida pelo sujeito, onde não necessariamente estará incluído o outro, como alguém externo. Neste ponto, encontramos uma grande diferença entre a culpabilidade e a vergonha pela relação de importância que existe na presença ou não do outro para o desenvolvimento destes sentimentos. Do ponto de vista tópico, o sentimento de culpa marca uma tensão entre o Eu e o Supereu, enquanto que no sentimento de vergonha a tensão se dá entre o Eu e o Ideal do Eu. Do ponto de vista económico, podemos afirmar que a vergonha é mais perniciosa que a culpa pela intensidade do dano a que o Eu se submete. Esta intensidade se refere ao esfacelamento das funções defensivas egóicas que constituem uma forma de perda do controle de si frente a uma testemunha. Esta figura da perda do controle é fundamental para que se entenda o grau de comprometimento que a vergonha carrega em si mesma. É neste carácter de exposição que a vergonha se mostra mais virulenta que a culpa. Enquanto a culpa exige uma reparação e esta se torna, geralmente, possível, no caso da vergonha, não há reparação possível. O que se encontra em jogo é a imagem que o sujeito tem de si em contraposição com aquela que ele imagina que as pessoas têm dele. Na vergonha aparece uma certa impotência de si mesmo que o sujeito acha que os outros foram testemunhas. Em última análise, a culpa revela o confronto do sujeito com a lei e o desejo, enquanto que a vergonha o faz com a imagem de si frente ao outro, ou seja, com o narcisismo. Já uma outra forma de se apontar a vergonha estaria na regulação daquilo que é público e do que é privado. A vergonha aparecerá sempre que algo do mundo privado se tornar exposto, público. A interiorização do lado censor, próprio do Supereu vai acarretar em uma característica importante, qual seja, a não necessidade da intervenção do outro para que a vergonha apareça. Na culpabilidade, sempre teremos a reprovação de um terceiro não intirnalizado. Embora não localizada em alguém específico, a vergonha pode ser desenvolvida pelo julgamento atributivo ao grupo e ao social. Neste caso, a vergonha guarda a possibilidade de atribuirmos um peso ao olhar de alguém, mesmo que este outro não perceba seu carácter de denúncia. Em torno da primeira tópica freudiana situamos a vergonha claramente ligada ao pudor e, portanto, à sexualidade, tendo como pano de fundo a essência do conflito psíquico balizada pela sexualidade e a moral. Quando Freud escreve o artigo “Introdução ao narcisismo” (1914) há a necessidade de se ampliar o conceito de sexualidade, não mais restrita à vinculação com a nudez e às transgressões de natureza edipiana. Essa nova sexualidade que apresenta em 1914 é metaforizada e ampliada, tornando qualquer investimento como sexual. Desta forma, em meio às polémicas típicas do movimento psicanalítico, Freud não abre mão da sexualidade e introduz o conceito de narcisismo. Assim, auto-estima também é uma expressão da sexualidade. Exactamente este aspecto é que necessitará que a vergonha ganhe um outro enfoque. Já falamos da vergonha ligada ao sexual, ao pudor e à exposição nos casos de nudez. Será necessário que abordemos a vergonha como ligada ao narcisismo, ou seja, uma vergonha que tem ligação com injúrias narcísicas. Existem pensamentos que mobilizam a culpa e tem pensamentos que mobilizam a vergonha. Após darmos uma visão geral a respeito das relações entre culpabilidade e vergonha, com a finalidade de mostrar que muitas vezes a vergonha se encontra ligada a situações que envolvem a sexualidade, quando associada ao pudor e à honra, e outras vezes, a vergonha aponta algo que diz respeito ao narcisismo e à perda do controle de si, cabe nos determos nesta segunda forma de expressão da vergonha.
Os meios de comunicação e o despudor da sociedade:
"Quando quisermos destruir uma nação, deveremos destruir a sua moral. Assim, ela cairá em nossas mãos como um fruto maduro". A receita de Lenin, carregada de cínico realismo, sintetiza a táctica adoptada por todos os sistemas de dominação humana. Uma sociedade narcotizada pelo erotismo é presa fácil dos interesses ideológicos, políticos e económicos. A pornografia, foi amplamente instrumentalizada pelos partidários de Hitler. As bandeiras da "liberdade sexual" e da abolição da censura moral, desfraldadas pelos partidos de inspiração gramsciana, têm propiciado excelentes dividendos políticos. E também a indústria pornográfica, livre do desconforto da clandestinidade, factura em cima de uma ficção de liberdade. A experiência quotidiana, contudo, confirma os estudos realizados no mundo inteiro acerca das consequências negativas do erotismo. Ninguém pode considerar-se imune aos efeitos degradantes da pornografia, ou a salvo da erosão dos valores causada por ela. A pornografia, aberta ou a camuflada, deprecia a sexualidade, perverte as relações humanas, explora os indivíduos - especialmente as mulheres, os jovens e as crianças.
Ao longo dos últimos anos houve uma revolução mundial no modo de captar os valores morais, seguida de mudanças profundas na maneira de pensar e de agir das pessoas. Os meios de comunicação social tiveram e continuam a ter um papel importante neste processo de transformação individual e social, na medida em que introduzem e reflectem novas atitudes e estilos de vida. Na verdade, o cidadão médio, alheio a outras fontes de conhecimento e de pensamento, fica inteiramente exposto à influência dos meios de comunicação social, particularmente os electrónicos. Estes são os verdadeiros canais de informação e, portanto, de formação da opinião pública. Assim, a própria consciência nacional, os padrões culturais e morais, as crenças, hábitos e anseios, são, em larga medida, modelados por esses veículos de comunicação.
É natural que exista uma conexão entre o que os media produzem numa determinada sociedade e a realidade própria dessa sociedade, pois o produto e o meio interagem reciprocamente; em países de menor desenvolvimento cultural, porém, a possibilidade dos média exprimirem valores e concepções com relativa autonomia é muito maior. Na verdade, os meios de comunicação social vêm adquirindo uma espécie de monopólio sobre o tempo de lazer das pessoas, e lidar bem com esse monopólio seria a grande responsabilidade de todos os veículos. No entanto, em nome de um conceito distorcido de livre competição, pautado por meros interesses mercadológicos e pela crescente relativização dos valores morais, os media ultrapassam todos os limites da permissividade. A demissão da virtude do pudor, decretada por alguns veículos de comunicação social, é um paradigma dessa tendência.
Basta um único exemplo: uma carta, permeada de precoce amargura, foi encaminhada recentemente à redacção de certa revista brasileira por uma menina de 13 anos, do Recife. Contava ela que aos 11 anos passava dia e noite diante da televisão. "Aprendi, desde então, a ver tudo com malícia e, em consequência, amadureci antes do que devia. Que país é este, que nos passa a irresponsabilidade de uma promiscuidade sem fim?"
Os meios de comunicação social, particularmente a televisão, tornaram padrão um tipo de liberalidade inimaginável em nações civilizadas. Nos Estados Unidos, país reconhecidamente democrático, existe a Federal Commission of Communications, ligada ao Congresso, que acompanha o desempenho das televisões. Há, além disso, uma lei federal proibindo pornografia e programas obscenos, o Communications Act. Mas as próprias emissoras têm os seus códigos e eles são cumpridos com rigor. Na rede NBC, as modelos são obrigadas a usar pelo menos alguma peça sobre o corpo em anúncios comerciais. São apenas exemplos de como um meio de comunicação poderoso precisa preocupar-se com detalhes, pois é a soma dos detalhes que determina o conjunto. Na França, a Haute Autorité Audiovisuelle, composta por 90 membros, não só assessora o Legislativo, mas também fiscaliza o cumprimento da legislação.É característica essencial da democracia respeitar as diferenças de opinião, porque, de facto e de direito, o modo de pensar de todos os cidadãos merece respeito. Segmentos reduzidos da sociedade, contudo, modelam - quase que a cavaleiro sobre a realidade nacional - a cosmovisão de todo um povo. Por isso, é possível exportar, através dos meios de comunicação, para todos os cantos do país, um padrão uniforme de pretensos valores, de estilos de vida próprios de pequenos extractos sociais, que se quer impor a todos sem a menor consideração pela fisionomia do país real. Efectivamente, os paradoxos são eloquentes e reflectem o brutal equívoco de uma cultura que agride a dignidade da pessoa humana.
As ideias de tabu, repressão e libertação, habilmente manipuladas, exercem um autêntico patrulhamento comportamental. O despudor é saudado como manifestação de modernidade. A decência, contudo, é estigmatizada como anacrónica. As reportagens sobre comportamento, veiculadas nos principais meios de comunicação social, reforçam a artilharia da nova “moral”.
Vergonha, culpa e pudor numa perspectiva social:
Mas o que é o pudor?
Com rigor, podemos dizer que se trata de um sentimento complexo, difícil de definir, que incide sobre diferentes objectos, sendo um dos mais comuns a vergonha da nudez. A sua origem é remota, mas cada época privilegia um aspecto diferente do pudor. Jean-Claude Bologne, filólogo francês, no livro História do Pudor (Teorema), resume as duas definições mais comuns e significativas do conceito: “sentimento de vergonha, de incómodo que se tem ao fazer, enfrentar ou ser testemunha das coisas de natureza sexual; disposição permanente para esse sentimento” e “incómodo que se sente perante aquilo que a dignidade de uma pessoa parece proibir”.
O dicionário distingue-lhe igualmente dois sentidos, apresentando-nos um pudor corporal, sexual, e outro dos sentimentos. Enquanto isso, Martin Seligman, investigador da área da psicologia positiva, define-o como uma das 24 forças (de carácter) presentes nas seis virtudes humanas. No caso do pudor, este está ligado à temperança, cujo pecado correspondente é a gula. Embora surja muitas vezes associado à timidez, é diferente desta. De acordo com especialistas da matéria, tem a ver com o escondido, com o não querer desvendar. A partir do momento que existe um desejo de revelar, o pudor desaparece. Já a timidez é uma inibição, está na ordem do bloqueio. “Tem a ver com o medo de falhar e ser julgado pelo outro. Passa pelo receio, pelo temor de enfrentar determinadas situações, eventualmente sociais. Este pode atingir tamanhas proporções que o indivíduo deixa de enfrentar os desafios que a vida lhe coloca”, observa a psicóloga clínica e terapeuta familiar, Catarina Rivero. “Já o pudor tem a ver com o corpo, com o sexual.”
Pode-se ser tímido sem se ser pudico, e o contrário também é verdade. Há pessoas que não têm problemas com a nudez do corpo, no entanto, não gostam de desnudar-se de sentimentos, de se revelar. Outras, pelo contrário, conseguem falar de si, até mesmo contar detalhes da sua vida íntima, mas têm muita dificuldade em mostrar uns centímetros do corpo.
De qualquer forma, do pudor, há quem diga que é como o medo: na medida certa, é estruturante. Resguarda-nos. “Em demasia, pelo contrário, pode ser prejudicial. Aliás, tal como a timidez”, afirma Marta Borges Pires, psicóloga clínica e terapeuta familiar. Porém, conforme assegura também, há sempre uma esperança: “Ambos podem ser trabalhados.” Social, histórico, cultural e dinâmico, o pudor é um conceito subjectivo. Não há um único tipo ou espécie de pudor, há vários ao longo das épocas e até dentro do mesmo tempo histórico. “Quando, no século XVII, as viagens intercontinentais revelaram aos Europeus povos que obedeciam a um pudor diferente do seu, surgiu uma nova reflexão (sobre este sentimento)”, declara Jean-Claude Bologne.
Cada tempo e sociedade cria os seus próprios “recatos” ou dá incidência a uns em detrimento de outros. Segundo Hans Peter Duerr, em Nudez e Pudor – o mito do processo civilizacional (Notícias Editorial), os indivíduos do final da Idade Média não só se “surpreendiam com os selvagens mais ou menos nus, como já antes se indignavam com os membros despidos ou meio despidos das seitas”. E assegura: “A partir desse dado, concluímos que não se pode falar de uma nudez pública sem quaisquer problemas naqueles tempos.” Mais tarde, em 1822, dissertando sobre o tema do amor, Stendhal também se refere ao pudor. “Uma mulher de Madagáscar deixa ver sem pensar o que aqui mais se esconde, mas morreria de vergonha se tivesse de mostrar o braço”, escreve no livro Do Amor (Pergaminho). Segundo o autor do célebre tratado de paixões e ciúmes, três quartos do pudor “são coisa apreendida”. “É talvez a única lei, filha da civilização, que só produz felicidade.” Quanto à sua utilidade? “Ela é a mãe do amor, nada se lhe poderia recusar.” E os mecanismos deste sentimento? “A alma ocupa-se com a vergonha em vez de se ocupar a desejar; sufocam-se os desejos e os desejos conduzem às acções.”
As diferenças de perspectiva e formas de interiorizar este sentimento não são coisas do passado. Por causa de sentimentos de pudor, nós tapamos algumas partes do corpo, e essa prática tornou-se norma social. Os indígenas de alguns clãs destapam-nas e não é por falta dele. Em algumas tribos do outro lado do Mundo, mulheres e homens andam praticamente nus. Sem culpa nem pecado… nem pudor! E, para fazerem o “apelo sexual”, conforme explica Catarina Rivero, agem precisamente ao contrário de nós, ocidentais: vestem--se. “Por exemplo, algumas mulheres tapam os seios.” O sentido de pudor vai evoluindo e adaptando-se. A psicóloga lembra que, em Portugal, por exemplo, se há 60 anos uma mulher viesse para a rua de mini-saia, como hoje, “isso seria considerado impúdico, pois o seu gesto ressaltaria o aspecto sexual”. Neste caso, “podemos verificar uma relação entre moda e pudor: a primeira faz evoluir o conceito da segunda”. Contudo, lembra, “nesta mesma altura, nas herdades agrícolas, as mulheres subiam as saias para melhor trabalhar e não eram avaliadas no mesmo sentido”. Posto isto, podemos concluir que, afinal, o pudor também está condicionado pelo lugar.
No seu livro, Jean-Claude Bologne escreve que “na praia ou na avenida, o fato de banho não tem o mesmo significado”, e lembra que o “pudor individual” – o que cada indivíduo tem em mostrar-se, ver-se nu ou com roupa mais ousada – reforça-se com um “pudor social que define, em função da época e do lugar, os limites tolerados à exibição”. E acrescenta: “A moral vestida de grego ou de latim, conhece também a distinção entre ethos (regras de conduta individuais) e habitus (regras de vida social)” Aliás, para este especialista, o pudor não se apresenta só “como perpétuo combate” entre “indivíduo e sociedade”, mas também “entre instinto e razão, entre consciência e inconsciência”.
Quando se trata de pudor, a fronteira entre o individual e o social é muito subtil. Socialmente, é-nos permitido o uso da roupa curta, decotes, transparências e o melhor que a moda pode criar, salvo em alguns meios. Recentemente, pais e educadores dos alunos de uma escola francesa constataram que era impúdico o uso de calças de cintura descaída que deixavam ver os slips, sendo os jovens proibidos de usar esta indumentária dentro da instituição. Sensivelmente pela mesma altura, o bispo de Leiria/Fátima, D. Serafim Ferreira da Silva, agradecia a presença e a fé por todos manifestada, mas criticava os que se tinham apresentado, no recinto do lugar das aparições, com os corpos “mais descobertos do que o desejável”. “O Santuário não é uma praia nem uma esplanada”, alertava. A diferença entre os dois casos é que este último trata de um pudor específico: o sagrado, que, conforme a definição, proíbe em igrejas e outros recintos sacros o que é permitido fora deles.
Tipologia do pudor:
Não existe um único, mas variadíssimos.
O individual: diz respeito ao que cada indivíduo interioriza, de acordo com o seu carácter. Prevalece no século XIX
O social: tem a ver com os limites tolerados em função do lugar e do estrato social. A sua expressão ganha fôlego na França do século XVII
O cristão: ligado à consciência do pecado original
O sagrado: proibia a entrada dos indivíduos num templo sem se estar purificado. É predominante na Grécia Antiga, reaparecendo por momentos nos anais da cristandade ocidental, principalmente nos finais do século XVII
O religioso: ergue-se contra a nudez pagã, inscrevendo-se num quadro bem mais vasto que é a luta contra o paganismo
O sexuado: constitui a parte mais constante da herança helenística. O homem nu não choca, a mulher nua é escandalosa, pelo que são raras as estátuas de mulheres nuas, por exemplo
Seja o que for para cada indivíduo e sociedade, é transmitido desde muito cedo, à semelhança de outros valores fundamentais. Segundo Marta Borges Pires, “as crianças vão interiorizando a concepção de pudor vigente no seu tempo e na sociedade onde nascem e vivem através do processo de socialização, à medida que adquirem todos os padrões de pensamento e comportamento característicos dessa colectividade”. Provavelmente, esta aprendizagem permite--nos também ter uma noção das regras de pudor adequadas aos lugares e a respeitar a vergonha dos outros.
Os pensadores do nosso tempo são objectivos: os pudores do século XX, de que somos herdeiros directos, estão mais na ordem dos sentimentos. “É indecente (...) falar de si próprio, fazer perguntas indiscretas e falar de dinheiro”, conforme se pode ler em História do Pudor. Segundo o autor do livro, Monsenhor Lustiger afirmava a este respeito que “nos escondemos para fazer o sinal da cruz, que antigamente se multiplicava à vontade”.
“São estes os pudores do nosso século, vergonha do que hoje se considera fraqueza”, observa Jean-Claude Bologne. “Pressente-se aí o laço que une o pudor corporal e pudor dos sentimentos. É errado tentar distinguir neste vínculo um pudor exterior e outro interior. A vergonha da nudez nasceu numa época em que mostrar-se nu era sinal de fraqueza (Idade Média) ou de ridículo (século XIX). Hoje, a moda quer que a literatura, as artes, a publicidade se libertem do pudor corporal: por isso, ele desapareceu do domínio artístico enquanto na vida quotidiana continua a usar-se bastante.”
De qualquer forma, o pudor masculino é diferente do feminino. O do sentimento – chorar, lamentar-se, orar e corar, por exemplo – foi sempre considerado domínio do homem. A mulher privilegia o corporal. A noção de pudor feminino está muito ligada à nudez, às coisas do corpo e do sexo.
A diferenciação dos pudores por sexo é antiga e prevalece nos nossos dias, embora as fronteiras entre uns e outros não sejam tão rígidas e estanques como outrora. Num tempo em que se cultiva o êxito e o sucesso, e se recusa todo o tipo de fragilidades, o pudor dos sentimentos ganha novo fôlego sem distinção por sexos. Espera-se, por isso, que os indivíduos – homens e mulheres – não exteriorizem preocupações, angústias, carências e outras emoções semelhantes. Por outro lado, curiosamente, vai sendo permitido a um homem chorar, sem que uma avaliação pública tão severa e negativa caia sobre si.
Em suma, a história do pudor cumpre-se assim através dos tempos, estando presente em todos eles. Cada sociedade e tempo histórico valoriza uns em detrimento dos outros, e cria os seus. Do pudor, talvez possamos dizer que, quando bem calibrado, pode ser a virtude que zela pela nossa intimidade plena. E, neste sentido, parece valer a pena cultivar pudor.
Quando encontramos uma era em que a culpa aparece no cenário da vergonha, observamos que é a anterioridade da cultura da vergonha em relação à cultura da culpa que vai promover uma transformação radical nos conceitos arcaicos. A vergonha passa a ser sentida quando vinculada às experiências que se encontram ligadas à sexualidade, resultando numa certa exposição pública do sujeito frente aos outros. A montagem baseada no pudor e na honra, que aparece na nudez exposta é bastante exemplar. No artigo “Sexualidade na etiologia das neuroses” (1898) Freud descreve que o pudor está relacionado à prática clínica no que diz respeito à relação médico e paciente. O enfoque é dado para o contexto dos hábitos culturais da época e o pudor da mulher frente ao médico, que teria como protótipo a vergonha de se desnudar. Em 1905, no ensaio sobre a sexualidade infantil, Freud mantém sua abordagem ligando o pudor à exposição do corpo frente ao outro. Em um outro momento, em que o pudor é citado, no artigo “Sobre o início do tratamento” (1913), Freud, ao se referir à dificuldade do analista lidar com dinheiro, utilizará uma analogia com a vida sexual infantil do médico, onde o pudor de lidar com o dinheiro revelaria a vergonha de estar frente ao outro como que desnudado. Quando Freud diz que na primeira infância a criança é desprovida do sentimento de vergonha, seu enfoque está voltado para a não consciência desta dimensão adulta da sexualização, antes da posse da noção de diferença sexual e na minha opinião, antes de conhecer as normas e valores que a sociedade lhe irá impor. Freud escreve em 1905, em seu ensaio sobre a sexualidade infantil que, a partir de um determinado momento, levantam-se os diques da moralidade, apontando o nojo, o pudor e a moralidade – aspirações ideais estéticas e morais – Explica que este acontecimento não estaria somente ligado a uma fonte externa oriunda da educação dos adultos, mas também, com factores hereditários, organicamente determinados. Estes factores disposicionais ganhariam reforço através das normas de higiene impostas pelos pais que assim, teriam um poder de fixidez. O resultado desta operação psíquica é criar um eficaz obstáculo à satisfação pulsional sexual baseada numa estrutura polimorfa perversa. O período de latência que se segue reforçaria estes diques até a adolescência quando, por conta do declínio do Complexo de Édipo, os vectores identificatórios e de investimento se deslocariam dos pais para as figuras substitutivas. No artigo “Mal-estar na cultura” (1930) distingue dois tipos de culpa que se encontram ligados desde o início: uma frente à autoridade externa e outra, frente ao Superego. Tudo que diga respeito ao corpo e a seus desejos deve se manter afastado do olhar do outro. Assim, estaríamos no terreno da vergonha. Mais tarde, o vice-versa, ou seja, o dever de se manter afastado do território alheio, o remeterá ao sentimento de culpa. A concomitância destes dois tipos de sentimentos são contemporâneos à interligação do conflito entre os interditos parentais e as tendências à satisfação pulsional imediata. Mais tarde, nas “Novas conferências” de 1933, o sentimento de culpa aparece ligado ao sentimento de inferioridade como resultado da tensão entre inter sistémica do Eu com o Supereu, que o condena. Reconhecemos aí, uma dinâmica estrutural que pode ou não ter efeitos mórbidos. Na neurose obsessiva e na melancolia encontramos exemplos desta função hipertrofiada resultando em quadros que cursam com um severo investimento destrutivo contra o Eu. A ambivalência, que constitui a forma dinâmica de relação da criança com os pais, frente ao dilema da demanda de amor e protecção e a agressividade pela frustração da renúncia a estes, vai se transformar em um sentimento de culpa e no desejo de ser punido. No rastro desta luta, o Supereu vai reunir estas características punitivas estabelecendo, então, a tensão que acima mencionamos entre o Eu e o Supereu, sob a forma de uma angústia moral. Na culpabilidade, estará ressaltada uma falta cometida pelo sujeito, onde não necessariamente estará incluído o outro, como alguém externo. Neste ponto, encontramos uma grande diferença entre a culpabilidade e a vergonha pela relação de importância que existe na presença ou não do outro para o desenvolvimento destes sentimentos. Do ponto de vista tópico, o sentimento de culpa marca uma tensão entre o Eu e o Supereu, enquanto que no sentimento de vergonha a tensão se dá entre o Eu e o Ideal do Eu. Do ponto de vista económico, podemos afirmar que a vergonha é mais perniciosa que a culpa pela intensidade do dano a que o Eu se submete. Esta intensidade se refere ao esfacelamento das funções defensivas egóicas que constituem uma forma de perda do controle de si frente a uma testemunha. Esta figura da perda do controle é fundamental para que se entenda o grau de comprometimento que a vergonha carrega em si mesma. É neste carácter de exposição que a vergonha se mostra mais virulenta que a culpa. Enquanto a culpa exige uma reparação e esta se torna, geralmente, possível, no caso da vergonha, não há reparação possível. O que se encontra em jogo é a imagem que o sujeito tem de si em contraposição com aquela que ele imagina que as pessoas têm dele. Na vergonha aparece uma certa impotência de si mesmo que o sujeito acha que os outros foram testemunhas. Em última análise, a culpa revela o confronto do sujeito com a lei e o desejo, enquanto que a vergonha o faz com a imagem de si frente ao outro, ou seja, com o narcisismo. Já uma outra forma de se apontar a vergonha estaria na regulação daquilo que é público e do que é privado. A vergonha aparecerá sempre que algo do mundo privado se tornar exposto, público. A interiorização do lado censor, próprio do Supereu vai acarretar em uma característica importante, qual seja, a não necessidade da intervenção do outro para que a vergonha apareça. Na culpabilidade, sempre teremos a reprovação de um terceiro não intirnalizado. Embora não localizada em alguém específico, a vergonha pode ser desenvolvida pelo julgamento atributivo ao grupo e ao social. Neste caso, a vergonha guarda a possibilidade de atribuirmos um peso ao olhar de alguém, mesmo que este outro não perceba seu carácter de denúncia. Em torno da primeira tópica freudiana situamos a vergonha claramente ligada ao pudor e, portanto, à sexualidade, tendo como pano de fundo a essência do conflito psíquico balizada pela sexualidade e a moral. Quando Freud escreve o artigo “Introdução ao narcisismo” (1914) há a necessidade de se ampliar o conceito de sexualidade, não mais restrita à vinculação com a nudez e às transgressões de natureza edipiana. Essa nova sexualidade que apresenta em 1914 é metaforizada e ampliada, tornando qualquer investimento como sexual. Desta forma, em meio às polémicas típicas do movimento psicanalítico, Freud não abre mão da sexualidade e introduz o conceito de narcisismo. Assim, auto-estima também é uma expressão da sexualidade. Exactamente este aspecto é que necessitará que a vergonha ganhe um outro enfoque. Já falamos da vergonha ligada ao sexual, ao pudor e à exposição nos casos de nudez. Será necessário que abordemos a vergonha como ligada ao narcisismo, ou seja, uma vergonha que tem ligação com injúrias narcísicas. Existem pensamentos que mobilizam a culpa e tem pensamentos que mobilizam a vergonha. Após darmos uma visão geral a respeito das relações entre culpabilidade e vergonha, com a finalidade de mostrar que muitas vezes a vergonha se encontra ligada a situações que envolvem a sexualidade, quando associada ao pudor e à honra, e outras vezes, a vergonha aponta algo que diz respeito ao narcisismo e à perda do controle de si, cabe nos determos nesta segunda forma de expressão da vergonha.
Os meios de comunicação e o despudor da sociedade:
"Quando quisermos destruir uma nação, deveremos destruir a sua moral. Assim, ela cairá em nossas mãos como um fruto maduro". A receita de Lenin, carregada de cínico realismo, sintetiza a táctica adoptada por todos os sistemas de dominação humana. Uma sociedade narcotizada pelo erotismo é presa fácil dos interesses ideológicos, políticos e económicos. A pornografia, foi amplamente instrumentalizada pelos partidários de Hitler. As bandeiras da "liberdade sexual" e da abolição da censura moral, desfraldadas pelos partidos de inspiração gramsciana, têm propiciado excelentes dividendos políticos. E também a indústria pornográfica, livre do desconforto da clandestinidade, factura em cima de uma ficção de liberdade. A experiência quotidiana, contudo, confirma os estudos realizados no mundo inteiro acerca das consequências negativas do erotismo. Ninguém pode considerar-se imune aos efeitos degradantes da pornografia, ou a salvo da erosão dos valores causada por ela. A pornografia, aberta ou a camuflada, deprecia a sexualidade, perverte as relações humanas, explora os indivíduos - especialmente as mulheres, os jovens e as crianças.
Ao longo dos últimos anos houve uma revolução mundial no modo de captar os valores morais, seguida de mudanças profundas na maneira de pensar e de agir das pessoas. Os meios de comunicação social tiveram e continuam a ter um papel importante neste processo de transformação individual e social, na medida em que introduzem e reflectem novas atitudes e estilos de vida. Na verdade, o cidadão médio, alheio a outras fontes de conhecimento e de pensamento, fica inteiramente exposto à influência dos meios de comunicação social, particularmente os electrónicos. Estes são os verdadeiros canais de informação e, portanto, de formação da opinião pública. Assim, a própria consciência nacional, os padrões culturais e morais, as crenças, hábitos e anseios, são, em larga medida, modelados por esses veículos de comunicação.
É natural que exista uma conexão entre o que os media produzem numa determinada sociedade e a realidade própria dessa sociedade, pois o produto e o meio interagem reciprocamente; em países de menor desenvolvimento cultural, porém, a possibilidade dos média exprimirem valores e concepções com relativa autonomia é muito maior. Na verdade, os meios de comunicação social vêm adquirindo uma espécie de monopólio sobre o tempo de lazer das pessoas, e lidar bem com esse monopólio seria a grande responsabilidade de todos os veículos. No entanto, em nome de um conceito distorcido de livre competição, pautado por meros interesses mercadológicos e pela crescente relativização dos valores morais, os media ultrapassam todos os limites da permissividade. A demissão da virtude do pudor, decretada por alguns veículos de comunicação social, é um paradigma dessa tendência.
Basta um único exemplo: uma carta, permeada de precoce amargura, foi encaminhada recentemente à redacção de certa revista brasileira por uma menina de 13 anos, do Recife. Contava ela que aos 11 anos passava dia e noite diante da televisão. "Aprendi, desde então, a ver tudo com malícia e, em consequência, amadureci antes do que devia. Que país é este, que nos passa a irresponsabilidade de uma promiscuidade sem fim?"
Os meios de comunicação social, particularmente a televisão, tornaram padrão um tipo de liberalidade inimaginável em nações civilizadas. Nos Estados Unidos, país reconhecidamente democrático, existe a Federal Commission of Communications, ligada ao Congresso, que acompanha o desempenho das televisões. Há, além disso, uma lei federal proibindo pornografia e programas obscenos, o Communications Act. Mas as próprias emissoras têm os seus códigos e eles são cumpridos com rigor. Na rede NBC, as modelos são obrigadas a usar pelo menos alguma peça sobre o corpo em anúncios comerciais. São apenas exemplos de como um meio de comunicação poderoso precisa preocupar-se com detalhes, pois é a soma dos detalhes que determina o conjunto. Na França, a Haute Autorité Audiovisuelle, composta por 90 membros, não só assessora o Legislativo, mas também fiscaliza o cumprimento da legislação.É característica essencial da democracia respeitar as diferenças de opinião, porque, de facto e de direito, o modo de pensar de todos os cidadãos merece respeito. Segmentos reduzidos da sociedade, contudo, modelam - quase que a cavaleiro sobre a realidade nacional - a cosmovisão de todo um povo. Por isso, é possível exportar, através dos meios de comunicação, para todos os cantos do país, um padrão uniforme de pretensos valores, de estilos de vida próprios de pequenos extractos sociais, que se quer impor a todos sem a menor consideração pela fisionomia do país real. Efectivamente, os paradoxos são eloquentes e reflectem o brutal equívoco de uma cultura que agride a dignidade da pessoa humana.
As ideias de tabu, repressão e libertação, habilmente manipuladas, exercem um autêntico patrulhamento comportamental. O despudor é saudado como manifestação de modernidade. A decência, contudo, é estigmatizada como anacrónica. As reportagens sobre comportamento, veiculadas nos principais meios de comunicação social, reforçam a artilharia da nova “moral”.
Vergonha, culpa e pudor numa perspectiva social:
Mas o que é o pudor?
Com rigor, podemos dizer que se trata de um sentimento complexo, difícil de definir, que incide sobre diferentes objectos, sendo um dos mais comuns a vergonha da nudez. A sua origem é remota, mas cada época privilegia um aspecto diferente do pudor. Jean-Claude Bologne, filólogo francês, no livro História do Pudor (Teorema), resume as duas definições mais comuns e significativas do conceito: “sentimento de vergonha, de incómodo que se tem ao fazer, enfrentar ou ser testemunha das coisas de natureza sexual; disposição permanente para esse sentimento” e “incómodo que se sente perante aquilo que a dignidade de uma pessoa parece proibir”.
O dicionário distingue-lhe igualmente dois sentidos, apresentando-nos um pudor corporal, sexual, e outro dos sentimentos. Enquanto isso, Martin Seligman, investigador da área da psicologia positiva, define-o como uma das 24 forças (de carácter) presentes nas seis virtudes humanas. No caso do pudor, este está ligado à temperança, cujo pecado correspondente é a gula. Embora surja muitas vezes associado à timidez, é diferente desta. De acordo com especialistas da matéria, tem a ver com o escondido, com o não querer desvendar. A partir do momento que existe um desejo de revelar, o pudor desaparece. Já a timidez é uma inibição, está na ordem do bloqueio. “Tem a ver com o medo de falhar e ser julgado pelo outro. Passa pelo receio, pelo temor de enfrentar determinadas situações, eventualmente sociais. Este pode atingir tamanhas proporções que o indivíduo deixa de enfrentar os desafios que a vida lhe coloca”, observa a psicóloga clínica e terapeuta familiar, Catarina Rivero. “Já o pudor tem a ver com o corpo, com o sexual.”
Pode-se ser tímido sem se ser pudico, e o contrário também é verdade. Há pessoas que não têm problemas com a nudez do corpo, no entanto, não gostam de desnudar-se de sentimentos, de se revelar. Outras, pelo contrário, conseguem falar de si, até mesmo contar detalhes da sua vida íntima, mas têm muita dificuldade em mostrar uns centímetros do corpo.
De qualquer forma, do pudor, há quem diga que é como o medo: na medida certa, é estruturante. Resguarda-nos. “Em demasia, pelo contrário, pode ser prejudicial. Aliás, tal como a timidez”, afirma Marta Borges Pires, psicóloga clínica e terapeuta familiar. Porém, conforme assegura também, há sempre uma esperança: “Ambos podem ser trabalhados.” Social, histórico, cultural e dinâmico, o pudor é um conceito subjectivo. Não há um único tipo ou espécie de pudor, há vários ao longo das épocas e até dentro do mesmo tempo histórico. “Quando, no século XVII, as viagens intercontinentais revelaram aos Europeus povos que obedeciam a um pudor diferente do seu, surgiu uma nova reflexão (sobre este sentimento)”, declara Jean-Claude Bologne.
Cada tempo e sociedade cria os seus próprios “recatos” ou dá incidência a uns em detrimento de outros. Segundo Hans Peter Duerr, em Nudez e Pudor – o mito do processo civilizacional (Notícias Editorial), os indivíduos do final da Idade Média não só se “surpreendiam com os selvagens mais ou menos nus, como já antes se indignavam com os membros despidos ou meio despidos das seitas”. E assegura: “A partir desse dado, concluímos que não se pode falar de uma nudez pública sem quaisquer problemas naqueles tempos.” Mais tarde, em 1822, dissertando sobre o tema do amor, Stendhal também se refere ao pudor. “Uma mulher de Madagáscar deixa ver sem pensar o que aqui mais se esconde, mas morreria de vergonha se tivesse de mostrar o braço”, escreve no livro Do Amor (Pergaminho). Segundo o autor do célebre tratado de paixões e ciúmes, três quartos do pudor “são coisa apreendida”. “É talvez a única lei, filha da civilização, que só produz felicidade.” Quanto à sua utilidade? “Ela é a mãe do amor, nada se lhe poderia recusar.” E os mecanismos deste sentimento? “A alma ocupa-se com a vergonha em vez de se ocupar a desejar; sufocam-se os desejos e os desejos conduzem às acções.”
As diferenças de perspectiva e formas de interiorizar este sentimento não são coisas do passado. Por causa de sentimentos de pudor, nós tapamos algumas partes do corpo, e essa prática tornou-se norma social. Os indígenas de alguns clãs destapam-nas e não é por falta dele. Em algumas tribos do outro lado do Mundo, mulheres e homens andam praticamente nus. Sem culpa nem pecado… nem pudor! E, para fazerem o “apelo sexual”, conforme explica Catarina Rivero, agem precisamente ao contrário de nós, ocidentais: vestem--se. “Por exemplo, algumas mulheres tapam os seios.” O sentido de pudor vai evoluindo e adaptando-se. A psicóloga lembra que, em Portugal, por exemplo, se há 60 anos uma mulher viesse para a rua de mini-saia, como hoje, “isso seria considerado impúdico, pois o seu gesto ressaltaria o aspecto sexual”. Neste caso, “podemos verificar uma relação entre moda e pudor: a primeira faz evoluir o conceito da segunda”. Contudo, lembra, “nesta mesma altura, nas herdades agrícolas, as mulheres subiam as saias para melhor trabalhar e não eram avaliadas no mesmo sentido”. Posto isto, podemos concluir que, afinal, o pudor também está condicionado pelo lugar.
No seu livro, Jean-Claude Bologne escreve que “na praia ou na avenida, o fato de banho não tem o mesmo significado”, e lembra que o “pudor individual” – o que cada indivíduo tem em mostrar-se, ver-se nu ou com roupa mais ousada – reforça-se com um “pudor social que define, em função da época e do lugar, os limites tolerados à exibição”. E acrescenta: “A moral vestida de grego ou de latim, conhece também a distinção entre ethos (regras de conduta individuais) e habitus (regras de vida social)” Aliás, para este especialista, o pudor não se apresenta só “como perpétuo combate” entre “indivíduo e sociedade”, mas também “entre instinto e razão, entre consciência e inconsciência”.
Quando se trata de pudor, a fronteira entre o individual e o social é muito subtil. Socialmente, é-nos permitido o uso da roupa curta, decotes, transparências e o melhor que a moda pode criar, salvo em alguns meios. Recentemente, pais e educadores dos alunos de uma escola francesa constataram que era impúdico o uso de calças de cintura descaída que deixavam ver os slips, sendo os jovens proibidos de usar esta indumentária dentro da instituição. Sensivelmente pela mesma altura, o bispo de Leiria/Fátima, D. Serafim Ferreira da Silva, agradecia a presença e a fé por todos manifestada, mas criticava os que se tinham apresentado, no recinto do lugar das aparições, com os corpos “mais descobertos do que o desejável”. “O Santuário não é uma praia nem uma esplanada”, alertava. A diferença entre os dois casos é que este último trata de um pudor específico: o sagrado, que, conforme a definição, proíbe em igrejas e outros recintos sacros o que é permitido fora deles.
Tipologia do pudor:
Não existe um único, mas variadíssimos.
O individual: diz respeito ao que cada indivíduo interioriza, de acordo com o seu carácter. Prevalece no século XIX
O social: tem a ver com os limites tolerados em função do lugar e do estrato social. A sua expressão ganha fôlego na França do século XVII
O cristão: ligado à consciência do pecado original
O sagrado: proibia a entrada dos indivíduos num templo sem se estar purificado. É predominante na Grécia Antiga, reaparecendo por momentos nos anais da cristandade ocidental, principalmente nos finais do século XVII
O religioso: ergue-se contra a nudez pagã, inscrevendo-se num quadro bem mais vasto que é a luta contra o paganismo
O sexuado: constitui a parte mais constante da herança helenística. O homem nu não choca, a mulher nua é escandalosa, pelo que são raras as estátuas de mulheres nuas, por exemplo
Seja o que for para cada indivíduo e sociedade, é transmitido desde muito cedo, à semelhança de outros valores fundamentais. Segundo Marta Borges Pires, “as crianças vão interiorizando a concepção de pudor vigente no seu tempo e na sociedade onde nascem e vivem através do processo de socialização, à medida que adquirem todos os padrões de pensamento e comportamento característicos dessa colectividade”. Provavelmente, esta aprendizagem permite--nos também ter uma noção das regras de pudor adequadas aos lugares e a respeitar a vergonha dos outros.
Os pensadores do nosso tempo são objectivos: os pudores do século XX, de que somos herdeiros directos, estão mais na ordem dos sentimentos. “É indecente (...) falar de si próprio, fazer perguntas indiscretas e falar de dinheiro”, conforme se pode ler em História do Pudor. Segundo o autor do livro, Monsenhor Lustiger afirmava a este respeito que “nos escondemos para fazer o sinal da cruz, que antigamente se multiplicava à vontade”.
“São estes os pudores do nosso século, vergonha do que hoje se considera fraqueza”, observa Jean-Claude Bologne. “Pressente-se aí o laço que une o pudor corporal e pudor dos sentimentos. É errado tentar distinguir neste vínculo um pudor exterior e outro interior. A vergonha da nudez nasceu numa época em que mostrar-se nu era sinal de fraqueza (Idade Média) ou de ridículo (século XIX). Hoje, a moda quer que a literatura, as artes, a publicidade se libertem do pudor corporal: por isso, ele desapareceu do domínio artístico enquanto na vida quotidiana continua a usar-se bastante.”
De qualquer forma, o pudor masculino é diferente do feminino. O do sentimento – chorar, lamentar-se, orar e corar, por exemplo – foi sempre considerado domínio do homem. A mulher privilegia o corporal. A noção de pudor feminino está muito ligada à nudez, às coisas do corpo e do sexo.
A diferenciação dos pudores por sexo é antiga e prevalece nos nossos dias, embora as fronteiras entre uns e outros não sejam tão rígidas e estanques como outrora. Num tempo em que se cultiva o êxito e o sucesso, e se recusa todo o tipo de fragilidades, o pudor dos sentimentos ganha novo fôlego sem distinção por sexos. Espera-se, por isso, que os indivíduos – homens e mulheres – não exteriorizem preocupações, angústias, carências e outras emoções semelhantes. Por outro lado, curiosamente, vai sendo permitido a um homem chorar, sem que uma avaliação pública tão severa e negativa caia sobre si.
Em suma, a história do pudor cumpre-se assim através dos tempos, estando presente em todos eles. Cada sociedade e tempo histórico valoriza uns em detrimento dos outros, e cria os seus. Do pudor, talvez possamos dizer que, quando bem calibrado, pode ser a virtude que zela pela nossa intimidade plena. E, neste sentido, parece valer a pena cultivar pudor.
Vanessa Bernardo
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